Saturday, December 06, 2008

Um subterrâneo

"Por esse tempo eu devia ter no máximo vinte e quatro anos. Levava uma vida sombria, desordenada até à misantropia. Não me dava com ninguém, evitava as conversas, e cada vez me refugiava mais e mais na minha toca. Na repartição do Ministério procurava não ver ninguém, e percebia claramente que os meus companheiros, não somente me olhavam como um bicho raro, como até com aversão."

Fiódor Dostoiévski
A Voz Subterrânea 1864

Pela primeira vez desde que iniciei esta caminhada, coloco aqui um pouco mais que frases soltas. Ao ler este treixo identifiquei-me com ele, senti a minha pessoa nas palavras de outro. Senti a minha escrita, na escrita de outro. Não que o autor destas palavras iniciais não seja sobejamente conhecido, mas só recentemente foi apresentado às palavras do mesmo. A semelhança assusta, não quero dizer com isto que o talento se assemalhe, de forma alguma, apenas é bom sentirmo-nos identificados com alguém mesmo que já não exista.

Todos nós temos o nosso subterrâneo, este é o meu como já o disse tantas vezes. É onde eu me coloco de fora e olho para a sociedade da qual faço parte. É onde posso criar longe dos olhares dos outros. Sem ser uma aberração.

Nesta sociedade de certezas e paradigmas ultrapassados, posso isolar-me e voltar às minhas incertezas da vida. Abandonar os rótulos que nos colocam, simplesmente ser. Quando estamos com outros somos estranhos, o nosso raciocínio vai para além daquele momento. Nunca estamos no momento que vivemos, estamos a pensar no que foi, no que será.

O momento é bom para aqueles que tem certezas, para quem o mundo é apenas esse instante. Sei que já aqui defendi que se deve aproveitar o momento, mas nunca fui totalmente sincero quando o disse... Nunca fui alguém de apreciar um só momento, sou demasiado complexo para isso. Estou sempre a pensar em mais coisas que às que consigo, sou por natureza insatisfeito. Ambição, uma palavra tantas vezes maltratada... Nesta sociedade de certezas olhamos a ambição como algo que só tem quem está disposto a passar por cima de tudo e todos, nunca como que devemos ter para alcançar os nossos objectivos sem necessitar de passar por cima de ninguém.
Alguns podem dizer "Mas se as pessoas que estão à nossa volta não nos interessa, porque é que nos devemos preocupar com elas?". Porque somos diferentes, porque mesmo que os outros não nos interessem vemos o nós. Vemos o que esta sociedade poderia um dia ser, mas sabemos que nunca o será. Como disse recentemente o nosso compatriota José Saramago "uma notícia com 15 segundos já é velha", não dão às pessoas tempo para pensar. Todos têm que estar no limite, sempre prontos para novos conceitos. Vive-se tão no momento que por vezes não se percebe que a "novidade" já é velha, que já existe há tanto tempo que se tivessemos tido tempo para absorvermos cada pedaço de informação que nos é posta há frente o teriamos percebido. A frase "saborear o momento" diz-nos isso mesmo, mas para nós o momentos não é apenas o momento. "Como assim?" perguntará o leitor, saborear o momento é para nós encaixar o que a situação significa com todo o contexto da nossa vida. Pessoas como nós podem saborear o momento anos depois dele ter acontecido.

Somos ou sou, nunca saberei bem quantas pessoas se identificam bem com este subterrâneo, pessoa(s) raramente de uma só especialidade; somos aqueles que nunca serão especialistas em algo, mas seremos/serei sempre aquele(s) que põe/pomos todo o meu/nosso coração em tudo o que fazemos. Cansa-me falar em dois tempos verbais por isso continuarei como se fossemos vários a pensar desta maneira. Somos profissionais, apaixonados... conceitos aparentemente contraditórios, contudo não o são pois quando iniciamos algo queremos ver o seu fim, mesmo que o que estamos a fazer não seja aquilo que desejavamos fazer. Temos a noção de compromisso, essa noção não nos permite abandonar algo antes de estar pronto ou nas mãos de gente de confiança. Podem-se perguntar "profissionais até percebo, mas onde está a paixão?", a paixão encontra-se no facto de tudo o que fazemos insistimos para que seja feito com amor; "Mas como ter amor por algo que não se quer fazer?" pergunta mais uma vez o leitor, e muito bem se me é permitido, a paixão deriva do carinho que temos por tudo onde nos metemos, o carinho que aquele projecto tenha o melhor resultado. Podemos falar de uma relação, um projecto ou simplesmente uma tarefa repetida todos os dias tudo isso tem algo de nós por isso queremos que seja bem feito. Somos apaixonados por nós, por aquilo que representamos. Alguns chamar-nos-ão renascentistas derivado do facto que somos competentes em artes tão diversas, outros de lunáticos por não querermos especializar-nos como o resto da sociedade. Nós não somos o resto da sociedade... Somos pessoas diferentes, não estamos nem acima nem abaixo de todos os outros, estamos apenas ao lado... Os paradigmas pelos quais nos regimos não são os mesmos que as outras pessoas, os ideais que defendemos não são os que esta sociedade defende, aquilos que somos não é o que a sociedade espera que sejamos.

Por vezes penso que somos o próprio paradigma... A nossa maneira de ser não é compatível com o nosso tempo, mas como é tal possível? não somos fruto da mesma sociedade? não deveria haver algo que nos identificasse com o tempo em que estamos? devo dizer que procurei, mas não encontro pontos de contacto que não sejam transversais há própria humanidade.... Será esse o preço da complexidade? Será por isso que tantos de nós procurem a simplicidade? Será isso o nosso "santo graal", buscamos aquilo que nunca poderemos ser, simples...

A estas horas as ideias divagam, o gin mais uma vez acaba no copo e o tabaco vai gentilmente desaparecendo. Penso se vale apena continuar estas deambulações que apenas faram sentido a meia dúzia de pessoas. Decido-me ficar por aqui, pois a narrativa já vai longa... Com carinho me despeço de todos a quem esta deambulação fez sentido


Tormentedly Yours
Mente Atormentada

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